quarta-feira, 25 de abril de 2012
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
sábado, 18 de junho de 2011
39 anos já
Um velho monge shan estava sentado, envolvido numa intensa discussão com um asceta hindu.
O monge explicava que todos os Shan acreditam que, quando um homem morre a sua alma vai para o Rio da Morte, onde o espera um barco para o atravessar para o outro lado, e é por esta razão que, quando um shan morre, os amigos colocam uma moeda na sua boca para pagar ao barqueiro que o leva para a outra margem.
Existe um rio, disse o hindu, que deve ser atravessado antes de se alcançar o céu mais elevado. Todos, mais cedo ou mais tarde, chegam à sua margem e têm de descobrir um meio de atravessar. Para alguns, a travessia é fácil e rápida; para outros, chegar à outra margem, é uma luta demorada e dolorosa, mas todos acabam por chegar a casa.
Nada sei dos mistérios insondáveis da morte. Sei, apenas, que seja onde for ou o que for essa casa onde todos acabaremos por chegar, o teu tempo aqui, Mãe, terminou há 39 anos. Só o meu amor por ti não terminou ainda. Por isso, permaneces viva no meu coração.
sexta-feira, 17 de junho de 2011
La Coca
À chegada a Lanhelas estranhei a casa. Com os seus dois andares e adega, o pomar em volta, a nascente donde a água brotava para um tanque com rãs, pareceu-me demasiado grande para os meus pais e para mim. Soturna também, como se encerrasse uma ameaça.
A paisagem de campos e bosques que se via do meu quarto, o rio, as serranias, a nesga de mar ao pé de Santa Tecla, isso de facto seduziu-me. Mas era serenidade demais, beleza demais, um equilíbrio tão perfeito que logo me faltou a desordem e o bulício a que me tinha habituado na infância, quando da minha janela olhava para o Porto.
Aqui tudo respirava paz. Em vez da cacofonia citadina os ruídos eram distintos, cada galo esperava o seu momento de poder cantar, o ladrar dos cães espaçado como um diálogo. Na estrada o trânsito era quase nulo. Durante o dia inteiro passavam na linha uns quatro ou cinco comboios, mas o silvo das locomotivas e o matraquear das rodas nos carris ouvia-se de longe, ia crescendo gradualmente, chegava, diminuía, era apenas um traço sonoro a vibrar por instantes na quietude do ar.
Como ainda hoje, casas a fazer rua só as havia no centro da aldeia. As outras espalhavam-se pela encosta, nos campos próximos da estrada, juntavam-se aqui e além num beco. Por isso junto da nossa raras vezes se ouviam sinais de gente, era surpresa maior quando, chuva ou sol, os ranchos que trabalhavam nas leiras subitamente entoavam em coro as cantigas dolentes da tradição, a alegre harmonia das quatro vozes cobrindo como um véu a tristeza e a saudade dos versos que falavam de amores perdidos, de ausências, de felicidades nunca sentidas.
∫∫∫∫∫∫∫∫
É certo que havia o dinheiro do contrabando, mas esse infelizmente não cabia a todos. Para ganhá-lo era preciso mostrar força, ter capacidade de sacrifício, gosto do risco, um traço de crueldade e indiferença de carácter que poucos possuíam. Por isso a aldeia tinha a sua elite de contrabandistas e uma infantaria de carrejões, pescadores-espias, moços de recados. Abaixo desses viviam os jornaleiros do campo, os serventes das pedreiras, os quase pobres de pedir que, levados pela fome, iam emigrando em pequenos saltos. Primeiro a pé, para Viana. Meses depois, arranjando um pecúlio e um fatinho decente, de comboio para o Porto. Mais meses, ou anos, de comboio para Lisboa. Até que finalmente, poupando migalhas, chegava a hora de comprar passagem no navio e fazer a grande travessia para o desconhecido do Brasil, da América, da Venezuela, do Canadá, para onde iam com o credo na boca e um grande medo de que a vida lhes corresse mal.
J. Rentes de Carvalho, La Coca
Etiquetas:
J. Rentes de Carvalho,
La Coca,
literatura portuguesa
sábado, 30 de abril de 2011
Coração do Bosque
1. Ergue-se a voz deste homem que sente, cada vez mais próxima, a respiração da morte. “Venham todos”, diz ele, rouco e magnânimo. E os filhos, espalhados pelo mundo, obedecem-lhe. Cinco percursos convergindo para o velho solar que emerge da bruma, na margem direita do Lima, casa grande e apalaçada convertida ao turismo de habitação, fonte de rendimento cinco vezes por ano. Os filhos regressam ao lugar da infância, à silhueta de pedra desenhando-se atrás do mesmo portão ferrugento e das mesmas videiras retorcidas, memória viva dos Verões que pareciam eternos mas não eram. Tantos anos depois, o patriarca disse: “Venham todos.” E eles vieram.
2. Espalhados pelos sofás da sala principal: Cármen, Filomena, Constança, Baltasar e Guilherme. Pernas cruzadas. Cigarrilhas acesas. Mãos tensas ajeitando blusas de seda e calças de veludo côtelé. Um silêncio constrangido. O tiquetaque do relógio vertical. Cinzas mortas na lareira apagada. Pela janela, a luz púrpura do crepúsculo. Filomena aproxima-se da varanda, abre a porta de vidro, espreita lá para fora. O jardim mantém o rigor geométrico das sebes, a elegância britânica da relva cortada muito rente. Do lado esquerdo, um caminho de terra através do pomar de laranjais e entre a folhagem, cheio de brilhos, o movimento lento do rio. À direita, o curral, as colmeias, uma pequena horta, o poço e o bosque de pinheiros bravos, agora estranhamente encolhido e sombrio. Filomena vira-se para dentro. “Lembram-se?” Os outros olham uns para os outros, como se tivessem vergonha.
3. À mesa do pequeno-almoço. Toalha de linho, chávenas de porcelana holandesa, geleia de marmelo, pão cozido em forno a lenha. Gargalhadas, gritinhos, manchas de café que alguém entornou de propósito. A euforia reverberando nos corredores. “Há quantos anos não estávamos assim, todos juntos? Vinte? Trinta?” A frieza da véspera dissolveu-se com as conversas nocturnas. Recapitularam-se os diferentes rumos, as vidas tão díspares, reduzidas a um mero intervalo, uma pausa, uma elipse. Circulam fotos de filhos, escritórios no Porto, novos maridos, casas ainda a cheirar a tinta. Na cozinha, a mais velha das empregadas comove-se com o ruído infantil que volta a encher a casa, como no tempo em que a senhora ainda era viva e dava ordens.
4. Sobre o que o velho lhes vai dizer, paira a incógnita. Cármen e Baltasar acreditam que o pai, amolecido pela velhice, vai perdoar os desvarios da prole e recompensá-los a todos com um testamento generoso. Constança e Guilherme, por seu lado, temem um castigo tardio digno do Antigo Testamento. Só Filomena, a caçula ingénua, sorri: “Acho que ele nos chamou para isto, para estarmos juntos outra vez, para nos reencontrarmos assim.”
5. No quarto sombrio, o moribundo pede para falar com a filha mais nova. Os outros saem e ele partilha enfim o segredo que lhe envenenou a vida: “Apenas tu, querida, és sangue do meu sangue.” À saída, Filomena diz aos outros que o pai morreu sereno. E esconde-lhes a verdade. Dentro da malinha, inútil, o testamento que há-de rasgar mais tarde, no coração do bosque.
Etiquetas:
Coração do Bosque,
José Mário Silva,
literatura portuguesa
segunda-feira, 28 de março de 2011
Deste reino que já não é o meu mundo
Hoje, estou deprimido, pior, estou deprimidíssimo. Acordei cedo, mais cedo do que tencionava e, como não tinha nada urgente para fazer, saí para espairecer com o pretexto de comprar papel de carta para escrever a um velho e bom amigo. Posso afirmar sem exagero que percorri quilómetros a mendigar de papelaria em arremedo disso um bloco imaginário de folhas encorpadas, suaves ao toque, em que uma caneta de tinta permanente ou mesmo uma esferográfica proletária deslizassem em pontas para desenhar letras perfeitas e alinhavar palavras de saudade e benquerença.
Depois de muitas tentativas mal sucedidas acabei por regressar desiludido, triste e de mãos a abanar. Primeiro, porque quase toda a gente que abordei me olhou como se eu tivesse uma doença psiquiátrica e, para alívio espiritual, a andasse passeando de loja em loja como quem passeia o cão de árvore em árvore. Segundo, porque a única pessoa interpelada no peditório que entendeu perfeitamente o que eu desejava era um velhinho tolhido pelo reumatismo que, abanando afirmativamente a cabeça a cada uma das palavras que descreviam o objecto do meu anseio, acabou por dizer-me, com tristeza na voz e no olhar, que blocos desses – como os de antigamente – já ninguém fazia porque não havia quem lhes desse uso. Terceiro, porque a funcionária com idade para ser minha filha, junto da qual fiz a última tentativa de obter o almejado bloco, depois de me ouvir em silêncio inexpressivo e procurar nas prateleiras da loja, atirou para cima do balcão com estrépito alguns cadernos escolares de folhas pautadas e disse-me autoritária e entediada que, onde se escrevesse, só tinha aquilo. Depois ficou a olhar para as unhas coloridas distraidamente e eu para ela estupefacto.
O caminho de regresso pareceu-me ainda mais longo e cansativo e as escadas de acesso ao primeiro andar onde resido transformaram-se na subida ao calvário embora a crucificação já estivesse consumada e a chaga do peito tivesse sido aberta à unhada. A extinção daquele bem desejado significava afinal que eu próprio me encontrava em liquidação esperando apenas o momento do suspiro derradeiro para me ausentar definitivamente deste reino que já não é o meu mundo.
Enquanto pensava assim lembrei-me dos tempos em que as várias expressões dos nossos sentimentos íntimos eram lavradas em documento assinado e seguiam muito bem-postas em envelopes para viajar de comboio, de barco e até de avião e serem recebidas da mão de um mensageiro por familiares, amantes, amigos e até simples conhecidos.
Bem sei que às vezes, por razões imperiosas, as palavras vestiam camuflados e também os usei para enviar de Moçambique, diariamente, as palavras que ajudavam a matar a saudade da mulher que deixara com a filha ainda criança e desafogar a minha. Mas nessa altura a guerra justificava o sem-cerimónia da roupagem que a correspondência vestia e, mesmo assim, logo que nos últimos meses de comissão me enviaram para Tete, apressei-me a comprar um lindo bloco de papel de carta amarelado que tinha tenuamente impressos alguns animais da fauna local. Lembrei-me dele. Quando fechei os olhos, voltou muito nítido, senti-o macio na polpa dos dedos enquanto escrevia mentalmente voltado para o Sol que despontava ao fundo da savana. Com ele nascia a certeza de que tudo era passado e despertava a saudade que sempre surge quando se recorda.
Lima-Reis, da cabeça aos pés
[Notícias Magazine – 27 de Março de 2011]
Etiquetas:
Deste reino que já não é o meu mundo,
Lima-Reis
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
O Faisão
Esse Natal passei-o no lago de Garda. Era um lugar inquietante, com algo de um porto levantino que se corrompeu a ser estância de moda. E no Inverno, com o soprar do vento alpino, o lago abria-se em cachões de chumbo, gemia como uma mulher no parto. Eu vivia numa casa à beira da água, uma estranha casa amarela com girassóis à entrada. Lawrence habitara perto, a dois quilómetros apenas; e eu pensava no encontro amável que seria o daquele homem numa tarde de chuva, com o seu gorro preto e um caderno de versos. Sentei-me por detrás da janela; o chá sabia a sabão, provavelmente alguém lavara escrupulosamente as chávenas, que tinham dióspiros pintados. Dióspiros ou pequenas begónias, não me lembro. Não havia luz eléctrica, um faisão magro tinha sido cozinhado num fogo de carvão; era um bicho esquelético, revestido de trufas mas nem por isso mais apresentável. Esperei até às onze horas pelos meus convidados; não vieram, e então jantei. Magnífica noite patriarcal, com o bramido do lago e o crepitante tremer dos juncos à beira da água! Acendi dez velas azuis e vesti outro casaco de lã por cima do vestido decotado. No Inverno sempre me visto mal, sempre me foge a alma para o mistério da hibernação, o sono dos ursos polares e o recolhimento dos esquilos. Cândido estalar de folhas secas, o cheiro opaco das peles onde a respiração se condena! O cataléptico Inverno, com o seu obscuro êxtase, a profética doçura do Advento, estação sem risos, religiosa, digna e profundamente compatível com o espírito. Eu deitei três pedrinhas de açúcar na minha xícara, e antes de pegar na colher ouvi uma voz autoritária, mas levíssima:
- Acho que estará demasiado doce.
Voltei-me. Não lhes disse que era uma sala quadrada, com quatro metros por cinco, não era bem quadrada, como podem ver. No ângulo da esquerda estava de pé um senhor extremamente bem trajado, de rosto distinto e que se esforçava por parecer louco. Não o conseguia. Via-se que fora esmeradamente educado na infância, e só podia parecer algo excêntrico. É um inglês – pensei –; são bastante conversáveis, se admitimos que desfrutam duma razão periclitante mas sobre-humana.
- Sou David Herbert Lawrence – disse ele. Não esperava isso, e levantei-me com precipitação.
- Seja bem-vindo. Há ainda faisão assado que não é mau. É um faisão de Sirmione. – Ele deitou um olhar de aflição para a mesa onde rechinavam as velas que, por baixo da pintura, eram de horrível sebo. Não achou convidativa a ave triste com os ossos denegridos sob as trufas, e voltou a cabeça evasivamente. – Feliz noite de Natal – acrescentei.
Lawrence sorriu com benevolência e pousou o seu chapéu de feltro, um borsalino cinzento. Era um homem muito decente, limpou os pés duas vezes antes de se aproximar. Depois apanhou o guardanapo que me tinha caído dos joelhos e entregou-mo delicadamente. As pessoas não reparam nestas sugestões do carácter, mas toda uma obra escrita, propícia a ser queimada na Chaminé do Rei, não prova a simples, sincera compleição dum autor; enquanto que os seus pequenos gestos de convívio, a maneira de pegar num objecto sem dar a impressão de se apoderar dele, o modo como entra numa casa sem dar a ideia de que espera demoli-la com o sopro dos seus pulmões, isso define o homem que muitas vezes o mundo recusou. A obra representa a crise e não a norma. Lawrence tomou uma cadeira vitoriana e pôs-se a falar com animação e argúcia.
- Feliz noite de Natal… Contudo, a senhora e eu estamos muito distantes dos nossos costumes, da nossa família, dos bons regalos da meninice, do rum a arder, das coroas de azevinho. Não vejo na sua mesa os severos pratos de abstinência, o azeite de oliveira e as fritas de mel. Para milhões de seres, durante muitos séculos, o Natal foi característica de cada rito; havia decerto, para os mais velhos, um estremecimento fúnebre ao ver vazios os lugares dos ausentes, ou preenchidos com uma alegria terrível. Sim, terrível… - Ele sorriu e estendeu sobre a mesa a sua mão febril. – Quando eu era criança, sempre dormia vestido na noite de Natal. E pensava que um anjo me encontraria pronto para viajar com ele, e me levava… Não é estranho?
- Era um pensamento discreto, mais nada – disse-lhe. Ofereci-lhe chá, mas ele recusou, ainda que tivesse o aspecto exangue e os lábios trémulos.
- Sempre fui discreto, as pessoas não perceberam que ser discreto é o contrário de ser sensato. A discrição pode-nos levar a ser perseguidos, a sofrer julgamentos infames. A sensatez contemporiza, renuncia; a discrição não pactua nunca, espera, confia, convoca, reserva-se. – Olhou para mim bem nos olhos. – O que significa torre de marfim? Ebúrneo é o rosto do que medita, sem paixão, nos mistérios da terra e do céu.
- Pode ser… - E eu pousei a minha mão na borda da mesa. Era uma sólida mesa de nogueira, e eu cobrira-a com uma toalha de estopa, único penhor do meu país e da minha casta. Tornara-me maleável e fina, do muito que a usara. Ela lembrava-me aquele canto escuro da cozinha onde vinham lavar as mãos os criados e os amos, antes de cear; o fumo do petróleo subia das candeias como um risco de grafite. Pensativo Natal era nesse tempo, discreto… Eu certifiquei-me de que não havia mais chá dentro do bule, teria que tomar a minha dose tal como estava, demasiado doce. Nesse momento chegaram os meus convidados; tinham bebido um pouco e riam-se alto, ouvia-os a cem metros de casa, Nesse momento chegaram os meus convidados; tinham bebido um pouco e riam-se alto, ouvia-os a cem metros de casa, procedendo a manobras com o carro. A chuva não era muita, mas o vento continuava a estalar as canas no lago. Lawrence levantou-se e despediu-se correctamente. Tinha uma cara s e despediu-se correctamente. Tinha uma cara surpreendente, de quem sofreu um desgosto anterior à própria razão; como se tivesse presenciado a destruição do amor e lhe sobrevivesse. Submergia com palavras não sabia que medo antiquíssimo e desprovido de memória.
- Esta noite nasce outra vez o Filho de Deus Invisível. – Fez uma pausa breve e disse: - Muitas vezes pensei que me aproximava, que sabia… Restava-me sempre a decepção e o desespero. Foi para minorar a amargura de adorarmos um Deus Invisível que nasceu Jesus. Era um rosto à nossa imagem, mas, porque vinha da parte do Deus Invisível, não o quiseram. Foi por isso. Celebramos a vinda do Homem, mas repelimos o seu Espírito.
Ele pousou um dedo nos lábios. – Discrição, e feliz Natal…
Não o vi sair. Eu retirava da mesa o faisão e deitava fora a minha xícara de chá. Encontraram-me a chorar.
- Não é nada – disse. – Não tenho jantar para vocês.
E fomos a Sirmione comer ravioli.
- Acho que estará demasiado doce.
Voltei-me. Não lhes disse que era uma sala quadrada, com quatro metros por cinco, não era bem quadrada, como podem ver. No ângulo da esquerda estava de pé um senhor extremamente bem trajado, de rosto distinto e que se esforçava por parecer louco. Não o conseguia. Via-se que fora esmeradamente educado na infância, e só podia parecer algo excêntrico. É um inglês – pensei –; são bastante conversáveis, se admitimos que desfrutam duma razão periclitante mas sobre-humana.
- Sou David Herbert Lawrence – disse ele. Não esperava isso, e levantei-me com precipitação.
- Seja bem-vindo. Há ainda faisão assado que não é mau. É um faisão de Sirmione. – Ele deitou um olhar de aflição para a mesa onde rechinavam as velas que, por baixo da pintura, eram de horrível sebo. Não achou convidativa a ave triste com os ossos denegridos sob as trufas, e voltou a cabeça evasivamente. – Feliz noite de Natal – acrescentei.
Lawrence sorriu com benevolência e pousou o seu chapéu de feltro, um borsalino cinzento. Era um homem muito decente, limpou os pés duas vezes antes de se aproximar. Depois apanhou o guardanapo que me tinha caído dos joelhos e entregou-mo delicadamente. As pessoas não reparam nestas sugestões do carácter, mas toda uma obra escrita, propícia a ser queimada na Chaminé do Rei, não prova a simples, sincera compleição dum autor; enquanto que os seus pequenos gestos de convívio, a maneira de pegar num objecto sem dar a impressão de se apoderar dele, o modo como entra numa casa sem dar a ideia de que espera demoli-la com o sopro dos seus pulmões, isso define o homem que muitas vezes o mundo recusou. A obra representa a crise e não a norma. Lawrence tomou uma cadeira vitoriana e pôs-se a falar com animação e argúcia.
- Feliz noite de Natal… Contudo, a senhora e eu estamos muito distantes dos nossos costumes, da nossa família, dos bons regalos da meninice, do rum a arder, das coroas de azevinho. Não vejo na sua mesa os severos pratos de abstinência, o azeite de oliveira e as fritas de mel. Para milhões de seres, durante muitos séculos, o Natal foi característica de cada rito; havia decerto, para os mais velhos, um estremecimento fúnebre ao ver vazios os lugares dos ausentes, ou preenchidos com uma alegria terrível. Sim, terrível… - Ele sorriu e estendeu sobre a mesa a sua mão febril. – Quando eu era criança, sempre dormia vestido na noite de Natal. E pensava que um anjo me encontraria pronto para viajar com ele, e me levava… Não é estranho?
- Era um pensamento discreto, mais nada – disse-lhe. Ofereci-lhe chá, mas ele recusou, ainda que tivesse o aspecto exangue e os lábios trémulos.
- Sempre fui discreto, as pessoas não perceberam que ser discreto é o contrário de ser sensato. A discrição pode-nos levar a ser perseguidos, a sofrer julgamentos infames. A sensatez contemporiza, renuncia; a discrição não pactua nunca, espera, confia, convoca, reserva-se. – Olhou para mim bem nos olhos. – O que significa torre de marfim? Ebúrneo é o rosto do que medita, sem paixão, nos mistérios da terra e do céu.
- Pode ser… - E eu pousei a minha mão na borda da mesa. Era uma sólida mesa de nogueira, e eu cobrira-a com uma toalha de estopa, único penhor do meu país e da minha casta. Tornara-me maleável e fina, do muito que a usara. Ela lembrava-me aquele canto escuro da cozinha onde vinham lavar as mãos os criados e os amos, antes de cear; o fumo do petróleo subia das candeias como um risco de grafite. Pensativo Natal era nesse tempo, discreto… Eu certifiquei-me de que não havia mais chá dentro do bule, teria que tomar a minha dose tal como estava, demasiado doce. Nesse momento chegaram os meus convidados; tinham bebido um pouco e riam-se alto, ouvia-os a cem metros de casa, Nesse momento chegaram os meus convidados; tinham bebido um pouco e riam-se alto, ouvia-os a cem metros de casa, procedendo a manobras com o carro. A chuva não era muita, mas o vento continuava a estalar as canas no lago. Lawrence levantou-se e despediu-se correctamente. Tinha uma cara s e despediu-se correctamente. Tinha uma cara surpreendente, de quem sofreu um desgosto anterior à própria razão; como se tivesse presenciado a destruição do amor e lhe sobrevivesse. Submergia com palavras não sabia que medo antiquíssimo e desprovido de memória.
- Esta noite nasce outra vez o Filho de Deus Invisível. – Fez uma pausa breve e disse: - Muitas vezes pensei que me aproximava, que sabia… Restava-me sempre a decepção e o desespero. Foi para minorar a amargura de adorarmos um Deus Invisível que nasceu Jesus. Era um rosto à nossa imagem, mas, porque vinha da parte do Deus Invisível, não o quiseram. Foi por isso. Celebramos a vinda do Homem, mas repelimos o seu Espírito.
Ele pousou um dedo nos lábios. – Discrição, e feliz Natal…
Não o vi sair. Eu retirava da mesa o faisão e deitava fora a minha xícara de chá. Encontraram-me a chorar.
- Não é nada – disse. – Não tenho jantar para vocês.
E fomos a Sirmione comer ravioli.
Agustina Bessa-Luís, Tríptico,
(in Natal (Editora Arcádia – 1978)
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
literatura portuguesa,
Natal,
O Faisão
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Fernando Pessoa
Paira à tona da água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
***
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja.
***
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta,
Não sabe o que quer.
***
É uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...
***************
Fernando Pessoa (14 de Março de 1928)
Etiquetas:
75 anos da morte,
Fernando Pessoa,
poesia portuguesa
domingo, 25 de abril de 2010
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Cadernos do Subterrâneo
Toulouse-Lautrec (1894).Bordel da Rue des Moulins (Paris)
- Lisa, como podes dizer-me "como num livro", se também eu sofro por ti? E não só por ti. Tudo o que dormia no meu coração acordou agora... E tu não sofres por estar aqui? Não, é verdade, o hábito significa muito. Só Deus sabe o que o hábito pode fazer das pessoas. Será que pensas seriamente que nunca vais envelhecer, que vais ser sempre bonita e que te vão manter aqui pelos séculos dos séculos? Já não falando de que isto aqui também é nojento... Mas, aqui vai o que eu tenho para te dizer sobre isto, sobre a vida que levas agora: tu agora és bonita, és nova, és sincera; e pronto, quando acordei, há pouco, senti mesmo nojo por estar aqui contigo! Só em estado de embriaguez é que podemos vir parar aqui. Se tu estivesses noutro sítio qualquer, se vivesses como gente decente, talvez eu não só te tivesse desejado, me tivesse apaixonado, pura e simplesmente, ficasse feliz só com um olhar teu, já nem falo de uma palavra tua; talvez ficasse à tua espera ao portão, me pusesse de joelhos à tua frente; te considerasse como minha noiva, e visse isso como uma grande honra. Nunca pensasse nada de impuro sobre ti. Mas aqui, basta eu assobiar - e tu, queiras ou não, tens de me seguir, não és tu quem me dita a tua vontade, sou eu quem faz segundo a minha. O último dos camponeses aluga-se como jornaleiro, mesmo assim não se vende completamente, sabe que há um prazo. E o teu prazo, qual é? Pensa só: o que estás aqui a dar, o que vendes aqui?
A tua alma, sim, a tua alma, que não te pertence, que vendes ao mesmo tempo que o teu corpo! Expões a vexames o teu amor com o primeiro bêbado que apareça! O teu amor! Mas isso é tudo, é o teu diamante, o teu tesouro de rapariga, sabes o que é o amor? Há quem, para merecer o amor, esteja pronto a empenhar a alma, a deixar-se matar. E o teu amor, quanto vale agora? Compraram-te toda, és vendida na totalidade, e para que serve pedir amor se sem amor se pode obter tudo? Não existe ofensa mais grave para uma rapariga, não entendes isso? Ouvi dizer que vos deixam divertir, que vos deixam ter amantes. Não passa de uma brincadeira, pobres tolas, uma mentira, um sarcasmo que vos fazem, e vós engolis isso. Será que te ama de verdade, o teu amiguinho? Não acredito. Como pode amar-te, se sabe que basta eu assobiar para que o deixes? É um depravado! Tem alguma estima por ti, por mínima que seja? Que tens de comum com ele? Ele ri-se de ti e, ainda por cima, rouba-te - é esse o amor dele! Do mal o menos, se ele não te bater! Porque ele até, se calhar, te bate. Pergunta-lhe, caso tenhas um, se ele se quer casar contigo. Vai rir-se-te na cara, se não te cuspir em cima, se não te bater, e no entanto ele próprio não vale dois tostões. Por que continuas aqui, a desperdiçar a tua vida? Porque te dão café e comida farta? E dão-te de comer porquê? Se dessem com outra, com uma rapariga honesta, esse bocado de pão ficava-lhe atravessado na garganta, porque saberia por que lho dão. Estás em dívida aqui, vais estar sempre endividada, até ao fim, até ao momento em que os hóspedes já não queiram nada de ti. E isso vai acontecer muito em breve, não contes com a tua juventude. Tudo desaparece num abrir e fechar de olhos, aqui. Vão pôr-te no olho da rua. E não vão contentar-se em pôr-te fora, antes disso vão começar a maltratar-te, a censurar-te, a injuriar-te, como se não tivesses dado a tua saúde, como se não tivesses arruinado por nada a tua alma e juventude, mas como se fosses tu que tivesses deixado a tua patroa na miséria, a deixasses sem nada, como se fosses tu que a espoliasses. E não esperes por apoios: as tuas amigas vão unir-se contra ti para lhe agradar, são todas escravas disto, há muito que perderam a consciência e a caridade. São todas mulheres perdidas, não há nada pior, mais ignóbil, mais asqueroso no mundo do que as injúrias delas. E tu vais deixar tudo aqui, sem poderes salvar nada, a tua saúde, a tua juventude, a tua beleza, as tuas esperanças, aos vinte e dois anos vais ter o aspecto de uma mulher de trinta e cinco, podes dar-te por feliz se não estiveres doente, podes agradecer a Deus. Porque tu pensas, até aposto, que não trabalhas aqui, que te divertes! Mas não há trabalho mais duro no mundo, não há trabalhos forçados que sejam piores que isto. O coração é como se ficasse seco de lágrimas.
Fiódor Dostoiévski, Por Motivo da Neve Húmida,
in Cadernos do Subterrâneo
Etiquetas:
Cadernos do Subterrâneo,
Dostoiévski,
literatura russa,
prostituição
domingo, 31 de maio de 2009
ROSEMARY
Eram os olhos que, em Rosemary, mais chamavam a atenção: muito pretos, amendoados, rodeados de grandes pestanas, mais sorridentes que os lábios gordos e bem desenhados. E não admira. Era mexicaninha de gema, cheia de carnes firmes, torneada ao pormenor. Só não se dava muito pelos cabelos pretos e lisos, sempre rigorosamente apanhados, em pelo, sobre a nuca, cobertos com touca alençoada. E tinha um coração do tamanho duma abóbora-menina doce, doce, doce.
Rosemary casou aos dezasseis anos incompletos, por conveniência, com um velho americano que turistava na pequena cidade de Enseñada. Veio para a Califórnia na companhia do marido e foi às gargalhadas que o oficial da fronteira lhe visou o passaporte. Mais do que marido e mulher, pareciam avô e neta. Mas, para a então Rosa Maria, aquelas gargalhadas soavam melhor do que qualquer marcha nupcial. Para trás, deixava uma infância que nunca saíra do patamar da miséria: a multidão de irmãos, a barraca de espaço único, a promiscuidade, os pequenos crimes da sobrevivência, as disenterias de uma fome nunca satisfeita. E, sobretudo, um mercado de carne humana trafegado sob auspícios de crápulas que enriqueciam sem despesas. Foi nos meandros obscuros desta traficância que conheceu o velho americano com quem casou, após promessas de fidelidade que não eram para cumprir. A mesquinhez da vida ditava-lhe que aquele velho míope, vestido à safari e que se peidava finamente sempre que apalpava um seio de mulher, podia ser o seu bilhete da sorte. Suportou-lhe os cheiros e a lascívia e casaram sem demoras para não haver, de parte a parte, tempo para arrependimentos. Aos pais, o velho deixou algum dinheiro, comida e roupas que duraram pouco, mas que aliviaram a dor da despedida.
Na bagagem, Rosemary não trouxera saudades. Se a falta do cheiro do mar se confundiu, por vezes, com alguma lágrima atrevida, logo se apressava a enxugá-la com um “Tu estás é tola! A chorar por causa da falta do cheiro do mar?!”, mesmo com Luiz Sanchez a esperá-la, de sorriso enorme, chupa-chupa na mão para lhe oferecer, à saída do mercado do peixe. Era um amor de Primavera que o destino se apressou a fazer morrer de fome. Pelo menos, tinha a certeza do que não queria: ser igual à mãe, carregada de filhos, da barriga aos ombros, lambuzada de ranho, rota, suja e sem pão. Fugiu da miséria e das estórias líricas da avó Purificación, que mascava tabaco e cuspia palavras com lostras de saliva preta quando narrava casos duma guerrilha que não conduziu o povo a paraíso nenhum. Rosemary fazia que acreditava na virtude dos tiros e, enquanto a avó se engasgava, deixando à vista a ferida da sua boca desdentada, ela planeava a fuga daquele inferno de gente pobre. O velho americano fora mais que sorte grande.
Ao divorciar-se, Rosemary era dona de um pequeno apartamento, de um carro ainda em bom estado e de dinheiro suficiente para cursar enfermagem e assistência social.
Álamo Oliveira, já não gosto de CHOCOLATES
Etiquetas:
Açores,
Álamo Oliveira,
Já Não Gosto de Chocolates,
literatura portuguesa,
Rosemary
sábado, 25 de abril de 2009
quarta-feira, 22 de abril de 2009
quinta-feira, 9 de abril de 2009
quinta-feira, 5 de março de 2009
Caravelas doiradas a bailar...
Florbela Espanca [Vila Viçosa, 1894 - Matosinhos, 1930]
CARAVELAS…
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!...
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.
*
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!
*
Se eu sempre fui este Mar Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!
*
Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
Florbela Espanca
sábado, 24 de janeiro de 2009
O Consumismo e o Natal
Olhar o Natal doutra forma é necessário e urgente, quer se seja ou não cristão. Não posso deixar de estar de acordo com o texto que se segue e, por isso, o divulgo aqui, agradecendo ao meu sobrinho Cucas que mo enviou.
Quem aposta num mundo melhor não pode deixar de pensar em consumir de uma forma consciente e crítica e de optar por um estilo de vida simples.
O Natal, a festa do nascimento de Jesus Cristo, que veio ao mundo num simples e pobre estábulo de Belém, tornou-se, paradoxalmente, pretexto para a mais extravagante orgia de consumo. Um tempo que deveria ser de maior espiritualidade, para podermos acolher devidamente o dom de Deus, deu lugar à mais superficial e materialista época do ano. Em vez de recolhimento, só vemos azáfama e corrida aos centros comerciais.
Para muitos, o consumo é uma forma de compensar a insegurança, a insatisfação afectiva, social e espiritual. Para outros, é apenas uma moda, uma maneira de se conformarem com os padrões sociais vigentes. Gozar o mais que se pode, sem olhar a despesas. Para a maioria, pagar não parece ser um problema, e, quando o é, há sempre a hipótese do recurso ao crédito.
O Evangelho ensina a simplicidade, a sobriedade de vida e a partilha. Por sua vez, a cultura dominante induz à aquisição do supérfluo, ao consumo e ao esbanjamento. A poupança e a austeridade já não se usam. Como se prova pela inutilidade da maior parte das nossas prendas.
O consumo tornou-se o motor da economia. Para crescer, o modelo socioeconómico liberal que nos governa requer muita produção, compra, consumo e desperdício. A publicidade encarrega-se de difundir a «alma» do sistema: compra, usa e deita fora. O contrário do Evangelho, que nos ensina a renúncia, a gratuitidade e a partilha.
Quem aposta num mundo melhor não pode deixar de pensar em consumir de uma forma consciente e crítica e de optar por um estilo de vida simples. Porque não pode esquecer o elevado número de excluídos do «banquete da abundância» e as ameaças que pairam sobre o futuro do planeta.
Ao contrário do que se pensa, o consumo não é um acto privado, que depende apenas dos próprios gostos e capacidade económica. O exagero tem consequências nefastas. Em primeiro lugar para nós: somos submersos pelo lixo que produzimos; padecemos das doenças ligadas à superalimentação; e somos atacados pelas neuroses derivadas de muitas insatisfações e da vida frenética que levamos.
Depois, o nosso consumismo tem por detrás um problema social de dimensão planetária. Uma grande parte do preço do que para nós é supérfluo é pago pelos povos do Sul, que vêem agravar-se ainda mais as suas precárias condições de vida. Se todos os habitantes da Terra consumissem o que nós consumimos, seriam necessários seis planetas para utilizar como fonte de matérias-primas e como lixeira dos nossos desperdícios.
O Norte, que representa apenas 23 por cento da população mundial, consome mais de 80 por cento das reservas da Terra. Deste modo, condena à pobreza os outros dois terços da humanidade.
A produção e o consumo exagerados põem também em causa o futuro do planeta. Na agricultura, o uso maciço de fertilizantes e pesticidas envenena os lençóis de água; os efluentes industriais poluem os rios e os campos; os gases emitidos pela indústria e pelos veículos fazem aumentar o efeito de estufa, que por sua vez está na origem de catástrofes naturais; a sobre-exploração dos recursos empobrece a terra e os seus guardiões.
Uma vida mais sóbria não significa um retrocesso na qualidade de vida, o regresso à antiguidade e a uma alimentação deficiente. Exprime-se num estilo de vida que sabe distinguir entre as necessidades reais e as supérfluas; e tem em conta as exigências espirituais, afectivas, intelectuais e sociais de cada pessoa. Por isso, não esquece a partilha e a doação de si.
José Rebelo
Revista Além-Mar
(Missionários Combonianos)
30Nov2008
30Nov2008
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
A Crise
SIMENON E A CRISE
1. E a crise cresce... Esconder tal realidade é tapar o Sol com uma peneira. O que não ajuda ninguém. E, por sua vez, desde cima, não se resolve nenhum problema. Ou seja: injectar capital público na banca não levará a nada, enquanto o poder de compra do Zé Povinho -a maioria esmagadora dos portugueses- continuar a diminuir. Não me parece matéria reservada aos iluminados (?) da economia –sente-o e reconhece-o cada um na carteira e na barriga. Desespera e esperneia o neoliberalismo e tenta recompor-se, sempre à custa dos mais vulneráveis? Como se comporta este governo socialista ou irá comportar-se, caso ganhe a próxima legislatura (ainda que em maioria relativa, o que não seria negativo)? A espreitar o andar da carruagem e com o bolso a arder, assinalo o “regresso” de um grande escritor, que da condição humana tudo sabia e quase tudo disse: Georges Simenon. O livro, um romance policial: “A Amiga de Madame Maigret” (Asa). O herói, comissário Maigret. O labirinto dos sentimentos e dos conflitos sociais. Assim mesmo. Quem disse que o policial é género menor? Quem nunca leu “A Dama de Branco”, de Wilkie Collins? Hammett? Patricia Highsmith?...
Georges Simenon
2. ... o mágico Simenon que, em duas penadas, nos mergulha num mundo fascinante e nos revela almas? Nos agarra e apaixona. Desvenda os abismos da nossa natureza, os nossos anseios e frustrações –e a poesia da nossa breve caminhada. Houve quem o considerasse o Balzac do século XX. Fixou uma época e, à maneira do mestre oitocentista, descreveu figuras marcantes. Que diria ele deste nosso tempo irresponsável, canibalesco, indecente –em que os empórios se fazem e desfazem sobre cadáveres?
Manuel Poppe, O Outro Lado
Jornal de Notícias [7.Dez.2008]
Etiquetas:
Crise,
Maigret,
Manuel Poppe,
Simenon
Subscrever:
Mensagens (Atom)