quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cadernos do Subterrâneo

Toulouse-Lautrec (1894).Bordel da Rue des Moulins (Paris)

- Lisa, como podes dizer-me "como num livro", se também eu sofro por ti? E não só por ti. Tudo o que dormia no meu coração acordou agora... E tu não sofres por estar aqui? Não, é verdade, o hábito significa muito. Só Deus sabe o que o hábito pode fazer das pessoas. Será que pensas seriamente que nunca vais envelhecer, que vais ser sempre bonita e que te vão manter aqui pelos séculos dos séculos? Já não falando de que isto aqui também é nojento... Mas, aqui vai o que eu tenho para te dizer sobre isto, sobre a vida que levas agora: tu agora és bonita, és nova, és sincera; e pronto, quando acordei, há pouco, senti mesmo nojo por estar aqui contigo! Só em estado de embriaguez é que podemos vir parar aqui. Se tu estivesses noutro sítio qualquer, se vivesses como gente decente, talvez eu não só te tivesse desejado, me tivesse apaixonado, pura e simplesmente, ficasse feliz só com um olhar teu, já nem falo de uma palavra tua; talvez ficasse à tua espera ao portão, me pusesse de joelhos à tua frente; te considerasse como minha noiva, e visse isso como uma grande honra. Nunca pensasse nada de impuro sobre ti. Mas aqui, basta eu assobiar - e tu, queiras ou não, tens de me seguir, não és tu quem me dita a tua vontade, sou eu quem faz segundo a minha. O último dos camponeses aluga-se como jornaleiro, mesmo assim não se vende completamente, sabe que há um prazo. E o teu prazo, qual é? Pensa só: o que estás aqui a dar, o que vendes aqui?


A tua alma, sim, a tua alma, que não te pertence, que vendes ao mesmo tempo que o teu corpo! Expões a vexames o teu amor com o primeiro bêbado que apareça! O teu amor! Mas isso é tudo, é o teu diamante, o teu tesouro de rapariga, sabes o que é o amor? Há quem, para merecer o amor, esteja pronto a empenhar a alma, a deixar-se matar. E o teu amor, quanto vale agora? Compraram-te toda, és vendida na totalidade, e para que serve pedir amor se sem amor se pode obter tudo? Não existe ofensa mais grave para uma rapariga, não entendes isso? Ouvi dizer que vos deixam divertir, que vos deixam ter amantes. Não passa de uma brincadeira, pobres tolas, uma mentira, um sarcasmo que vos fazem, e vós engolis isso. Será que te ama de verdade, o teu amiguinho? Não acredito. Como pode amar-te, se sabe que basta eu assobiar para que o deixes? É um depravado! Tem alguma estima por ti, por mínima que seja? Que tens de comum com ele? Ele ri-se de ti e, ainda por cima, rouba-te - é esse o amor dele! Do mal o menos, se ele não te bater! Porque ele até, se calhar, te bate. Pergunta-lhe, caso tenhas um, se ele se quer casar contigo. Vai rir-se-te na cara, se não te cuspir em cima, se não te bater, e no entanto ele próprio não vale dois tostões. Por que continuas aqui, a desperdiçar a tua vida? Porque te dão café e comida farta? E dão-te de comer porquê? Se dessem com outra, com uma rapariga honesta, esse bocado de pão ficava-lhe atravessado na garganta, porque saberia por que lho dão. Estás em dívida aqui, vais estar sempre endividada, até ao fim, até ao momento em que os hóspedes já não queiram nada de ti. E isso vai acontecer muito em breve, não contes com a tua juventude. Tudo desaparece num abrir e fechar de olhos, aqui. Vão pôr-te no olho da rua. E não vão contentar-se em pôr-te fora, antes disso vão começar a maltratar-te, a censurar-te, a injuriar-te, como se não tivesses dado a tua saúde, como se não tivesses arruinado por nada a tua alma e juventude, mas como se fosses tu que tivesses deixado a tua patroa na miséria, a deixasses sem nada, como se fosses tu que a espoliasses. E não esperes por apoios: as tuas amigas vão unir-se contra ti para lhe agradar, são todas escravas disto, há muito que perderam a consciência e a caridade. São todas mulheres perdidas, não há nada pior, mais ignóbil, mais asqueroso no mundo do que as injúrias delas. E tu vais deixar tudo aqui, sem poderes salvar nada, a tua saúde, a tua juventude, a tua beleza, as tuas esperanças, aos vinte e dois anos vais ter o aspecto de uma mulher de trinta e cinco, podes dar-te por feliz se não estiveres doente, podes agradecer a Deus. Porque tu pensas, até aposto, que não trabalhas aqui, que te divertes! Mas não há trabalho mais duro no mundo, não há trabalhos forçados que sejam piores que isto. O coração é como se ficasse seco de lágrimas.

Fiódor Dostoiévski, Por Motivo da Neve Húmida,
in Cadernos do Subterrâneo

domingo, 31 de maio de 2009

ROSEMARY

Eram os olhos que, em Rosemary, mais chamavam a atenção: muito pretos, amendoados, rodeados de grandes pestanas, mais sorridentes que os lábios gordos e bem desenhados. E não admira. Era mexicaninha de gema, cheia de carnes firmes, torneada ao pormenor. Só não se dava muito pelos cabelos pretos e lisos, sempre rigorosamente apanhados, em pelo, sobre a nuca, cobertos com touca alençoada. E tinha um coração do tamanho duma abóbora-menina doce, doce, doce.
Rosemary casou aos dezasseis anos incompletos, por conveniência, com um velho americano que turistava na pequena cidade de Enseñada. Veio para a Califórnia na companhia do marido e foi às gargalhadas que o oficial da fronteira lhe visou o passaporte. Mais do que marido e mulher, pareciam avô e neta. Mas, para a então Rosa Maria, aquelas gargalhadas soavam melhor do que qualquer marcha nupcial. Para trás, deixava uma infância que nunca saíra do patamar da miséria: a multidão de irmãos, a barraca de espaço único, a promiscuidade, os pequenos crimes da sobrevivência, as disenterias de uma fome nunca satisfeita. E, sobretudo, um mercado de carne humana trafegado sob auspícios de crápulas que enriqueciam sem despesas. Foi nos meandros obscuros desta traficância que conheceu o velho americano com quem casou, após promessas de fidelidade que não eram para cumprir. A mesquinhez da vida ditava-lhe que aquele velho míope, vestido à safari e que se peidava finamente sempre que apalpava um seio de mulher, podia ser o seu bilhete da sorte. Suportou-lhe os cheiros e a lascívia e casaram sem demoras para não haver, de parte a parte, tempo para arrependimentos. Aos pais, o velho deixou algum dinheiro, comida e roupas que duraram pouco, mas que aliviaram a dor da despedida.
Na bagagem, Rosemary não trouxera saudades. Se a falta do cheiro do mar se confundiu, por vezes, com alguma lágrima atrevida, logo se apressava a enxugá-la com um “Tu estás é tola! A chorar por causa da falta do cheiro do mar?!”, mesmo com Luiz Sanchez a esperá-la, de sorriso enorme, chupa-chupa na mão para lhe oferecer, à saída do mercado do peixe. Era um amor de Primavera que o destino se apressou a fazer morrer de fome. Pelo menos, tinha a certeza do que não queria: ser igual à mãe, carregada de filhos, da barriga aos ombros, lambuzada de ranho, rota, suja e sem pão. Fugiu da miséria e das estórias líricas da avó Purificación, que mascava tabaco e cuspia palavras com lostras de saliva preta quando narrava casos duma guerrilha que não conduziu o povo a paraíso nenhum. Rosemary fazia que acreditava na virtude dos tiros e, enquanto a avó se engasgava, deixando à vista a ferida da sua boca desdentada, ela planeava a fuga daquele inferno de gente pobre. O velho americano fora mais que sorte grande.
Ao divorciar-se, Rosemary era dona de um pequeno apartamento, de um carro ainda em bom estado e de dinheiro suficiente para cursar enfermagem e assistência social.


Álamo Oliveira, já não gosto de CHOCOLATES

sábado, 25 de abril de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

DIA DA TERRA todos os dias

Quem, em seu perfeito juízo,
trataria assim a sua CASA?


quinta-feira, 9 de abril de 2009

quinta-feira, 5 de março de 2009

Caravelas doiradas a bailar...

Florbela Espanca [Vila Viçosa, 1894 - Matosinhos, 1930]

CARAVELAS…

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!...
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

*
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

*

Se eu sempre fui este Mar Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!

*

Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...


Florbela Espanca



sábado, 24 de janeiro de 2009

O Consumismo e o Natal

Olhar o Natal doutra forma é necessário e urgente, quer se seja ou não cristão. Não posso deixar de estar de acordo com o texto que se segue e, por isso, o divulgo aqui, agradecendo ao meu sobrinho Cucas que mo enviou.



Tempo de simplicidade

Quem aposta num mundo melhor não pode deixar de pensar em consumir de uma forma consciente e crítica e de optar por um estilo de vida simples.
O Natal, a festa do nascimento de Jesus Cristo, que veio ao mundo num simples e pobre estábulo de Belém, tornou-se, paradoxalmente, pretexto para a mais extravagante orgia de consumo. Um tempo que deveria ser de maior espiritualidade, para podermos acolher devidamente o dom de Deus, deu lugar à mais superficial e materialista época do ano. Em vez de recolhimento, só vemos azáfama e corrida aos centros comerciais.
Para muitos, o consumo é uma forma de compensar a insegurança, a insatisfação afectiva, social e espiritual. Para outros, é apenas uma moda, uma maneira de se conformarem com os padrões sociais vigentes. Gozar o mais que se pode, sem olhar a despesas. Para a maioria, pagar não parece ser um problema, e, quando o é, há sempre a hipótese do recurso ao crédito.
O Evangelho ensina a simplicidade, a sobriedade de vida e a partilha. Por sua vez, a cultura dominante induz à aquisição do supérfluo, ao consumo e ao esbanjamento. A poupança e a austeridade já não se usam. Como se prova pela inutilidade da maior parte das nossas prendas.
O consumo tornou-se o motor da economia. Para crescer, o modelo socioeconómico liberal que nos governa requer muita produção, compra, consumo e desperdício. A publicidade encarrega-se de difundir a «alma» do sistema: compra, usa e deita fora. O contrário do Evangelho, que nos ensina a renúncia, a gratuitidade e a partilha.
Quem aposta num mundo melhor não pode deixar de pensar em consumir de uma forma consciente e crítica e de optar por um estilo de vida simples. Porque não pode esquecer o elevado número de excluídos do «banquete da abundância» e as ameaças que pairam sobre o futuro do planeta.
Ao contrário do que se pensa, o consumo não é um acto privado, que depende apenas dos próprios gostos e capacidade económica. O exagero tem consequências nefastas. Em primeiro lugar para nós: somos submersos pelo lixo que produzimos; padecemos das doenças ligadas à superalimentação; e somos atacados pelas neuroses derivadas de muitas insatisfações e da vida frenética que levamos.
Depois, o nosso consumismo tem por detrás um problema social de dimensão planetária. Uma grande parte do preço do que para nós é supérfluo é pago pelos povos do Sul, que vêem agravar-se ainda mais as suas precárias condições de vida. Se todos os habitantes da Terra consumissem o que nós consumimos, seriam necessários seis planetas para utilizar como fonte de matérias-primas e como lixeira dos nossos desperdícios.
O Norte, que representa apenas 23 por cento da população mundial, consome mais de 80 por cento das reservas da Terra. Deste modo, condena à pobreza os outros dois terços da humanidade.
A produção e o consumo exagerados põem também em causa o futuro do planeta. Na agricultura, o uso maciço de fertilizantes e pesticidas envenena os lençóis de água; os efluentes industriais poluem os rios e os campos; os gases emitidos pela indústria e pelos veículos fazem aumentar o efeito de estufa, que por sua vez está na origem de catástrofes naturais; a sobre-exploração dos recursos empobrece a terra e os seus guardiões.
Uma vida mais sóbria não significa um retrocesso na qualidade de vida, o regresso à antiguidade e a uma alimentação deficiente. Exprime-se num estilo de vida que sabe distinguir entre as necessidades reais e as supérfluas; e tem em conta as exigências espirituais, afectivas, intelectuais e sociais de cada pessoa. Por isso, não esquece a partilha e a doação de si.


José Rebelo
Revista Além-Mar
(Missionários Combonianos)
30Nov2008