domingo, 31 de maio de 2009

ROSEMARY

Eram os olhos que, em Rosemary, mais chamavam a atenção: muito pretos, amendoados, rodeados de grandes pestanas, mais sorridentes que os lábios gordos e bem desenhados. E não admira. Era mexicaninha de gema, cheia de carnes firmes, torneada ao pormenor. Só não se dava muito pelos cabelos pretos e lisos, sempre rigorosamente apanhados, em pelo, sobre a nuca, cobertos com touca alençoada. E tinha um coração do tamanho duma abóbora-menina doce, doce, doce.
Rosemary casou aos dezasseis anos incompletos, por conveniência, com um velho americano que turistava na pequena cidade de Enseñada. Veio para a Califórnia na companhia do marido e foi às gargalhadas que o oficial da fronteira lhe visou o passaporte. Mais do que marido e mulher, pareciam avô e neta. Mas, para a então Rosa Maria, aquelas gargalhadas soavam melhor do que qualquer marcha nupcial. Para trás, deixava uma infância que nunca saíra do patamar da miséria: a multidão de irmãos, a barraca de espaço único, a promiscuidade, os pequenos crimes da sobrevivência, as disenterias de uma fome nunca satisfeita. E, sobretudo, um mercado de carne humana trafegado sob auspícios de crápulas que enriqueciam sem despesas. Foi nos meandros obscuros desta traficância que conheceu o velho americano com quem casou, após promessas de fidelidade que não eram para cumprir. A mesquinhez da vida ditava-lhe que aquele velho míope, vestido à safari e que se peidava finamente sempre que apalpava um seio de mulher, podia ser o seu bilhete da sorte. Suportou-lhe os cheiros e a lascívia e casaram sem demoras para não haver, de parte a parte, tempo para arrependimentos. Aos pais, o velho deixou algum dinheiro, comida e roupas que duraram pouco, mas que aliviaram a dor da despedida.
Na bagagem, Rosemary não trouxera saudades. Se a falta do cheiro do mar se confundiu, por vezes, com alguma lágrima atrevida, logo se apressava a enxugá-la com um “Tu estás é tola! A chorar por causa da falta do cheiro do mar?!”, mesmo com Luiz Sanchez a esperá-la, de sorriso enorme, chupa-chupa na mão para lhe oferecer, à saída do mercado do peixe. Era um amor de Primavera que o destino se apressou a fazer morrer de fome. Pelo menos, tinha a certeza do que não queria: ser igual à mãe, carregada de filhos, da barriga aos ombros, lambuzada de ranho, rota, suja e sem pão. Fugiu da miséria e das estórias líricas da avó Purificación, que mascava tabaco e cuspia palavras com lostras de saliva preta quando narrava casos duma guerrilha que não conduziu o povo a paraíso nenhum. Rosemary fazia que acreditava na virtude dos tiros e, enquanto a avó se engasgava, deixando à vista a ferida da sua boca desdentada, ela planeava a fuga daquele inferno de gente pobre. O velho americano fora mais que sorte grande.
Ao divorciar-se, Rosemary era dona de um pequeno apartamento, de um carro ainda em bom estado e de dinheiro suficiente para cursar enfermagem e assistência social.


Álamo Oliveira, já não gosto de CHOCOLATES

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