segunda-feira, 28 de março de 2011

Deste reino que já não é o meu mundo

Depressão ao nascer do Sol

Hoje, estou deprimido, pior, estou deprimidíssimo. Acordei cedo, mais cedo do que tencionava e, como não tinha nada urgente para fazer, saí para espairecer com o pretexto de comprar papel de carta para escrever a um velho e bom amigo. Posso afirmar sem exagero que percorri quilómetros a mendigar de papelaria em arremedo disso um bloco imaginário de folhas encorpadas, suaves ao toque, em que uma caneta de tinta permanente ou mesmo uma esferográfica proletária deslizassem em pontas para desenhar letras perfeitas e alinhavar palavras de saudade e benquerença.

Depois de muitas tentativas mal sucedidas acabei por regressar desiludido, triste e de mãos a abanar. Primeiro, porque quase toda a gente que abordei me olhou como se eu tivesse uma doença psiquiátrica e, para alívio espiritual, a andasse passeando de loja em loja como quem passeia o cão de árvore em árvore. Segundo, porque a única pessoa interpelada no peditório que entendeu perfeitamente o que eu desejava era um velhinho tolhido pelo reumatismo que, abanando afirmativamente a cabeça a cada uma das palavras que descreviam o objecto do meu anseio, acabou por dizer-me, com tristeza na voz e no olhar, que blocos desses – como os de antigamente – já ninguém fazia porque não havia quem lhes desse uso. Terceiro, porque a funcionária com idade para ser minha filha, junto da qual fiz a última tentativa de obter o almejado bloco, depois de me ouvir em silêncio inexpressivo e procurar nas prateleiras da loja, atirou para cima do balcão com estrépito alguns cadernos escolares de folhas pautadas e disse-me autoritária e entediada que, onde se escrevesse, só tinha aquilo. Depois ficou a olhar para as unhas coloridas distraidamente e eu para ela estupefacto.

O caminho de regresso pareceu-me ainda mais longo e cansativo e as escadas de acesso ao primeiro andar onde resido transformaram-se na subida ao calvário embora a crucificação já estivesse consumada e a chaga do peito tivesse sido aberta à unhada. A extinção daquele bem desejado significava afinal que eu próprio me encontrava em liquidação esperando apenas o momento do suspiro derradeiro para me ausentar definitivamente deste reino que já não é o meu mundo.

Enquanto pensava assim lembrei-me dos tempos em que as várias expressões dos nossos sentimentos íntimos eram lavradas em documento assinado e seguiam muito bem-postas em envelopes para viajar de comboio, de barco e até de avião e serem recebidas da mão de um mensageiro por familiares, amantes, amigos e até simples conhecidos.

Bem sei que às vezes, por razões imperiosas, as palavras vestiam camuflados e também os usei para enviar de Moçambique, diariamente, as palavras que ajudavam a matar a saudade da mulher que deixara com a filha ainda criança e desafogar a minha. Mas nessa altura a guerra justificava o sem-cerimónia da roupagem que a correspondência vestia e, mesmo assim, logo que nos últimos meses de comissão me enviaram para Tete, apressei-me a comprar um lindo bloco de papel de carta amarelado que tinha tenuamente impressos alguns animais da fauna local. Lembrei-me dele. Quando fechei os olhos, voltou muito nítido, senti-o macio na polpa dos dedos enquanto escrevia mentalmente voltado para o Sol que despontava ao fundo da savana. Com ele nascia a certeza de que tudo era passado e despertava a saudade que sempre surge quando se recorda.

Lima-Reis, da cabeça aos pés

[Notícias Magazine – 27 de Março de 2011]