quinta-feira, 22 de maio de 2008

ALERTA VERMELHO

Tsunami silencioso
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Está adiado o sonho de o prémio Nobel da Paz, o bengali Muhammad Yunus, impulsionador do microcrédito, ver a fome restringida a museus para que o ser humano nunca se esquecesse das tragédias que a fome provoca. A fome foi e é, mais do que as guerras e a peste, a pior arma de destruição maciça. Foi e é responsável por inúmeros e silenciosos morticínios humanos.
Com a incompetência, a indiferença e a ganância instaladas há décadas na governação global, nos seus aliados institucionais (FMI, BM, OMC…) e em alguns fundos globais, sem ética, continuaremos a observar por muito tempo o nefando quadro da fome: ela instalou-se no nosso seio e já está a ceifar milhões de vidas.
As causas do espectro da fome global são múltiplas, todas previsíveis e evitáveis, não fossem os aprendizes de feiticeiro já citados terem dado ou obtido de bandeja todas as oportunidades para agravarem o mortífero tsunami silencioso da fome. De desregulamentação em desregulamentação, chegou-se à desenfreada especulação sobre os alimentos, prevendo a ONU que se possa chegar, se medidas estruturantes urgentes não forem tomadas, ao morticínio de cem milhões de pessoas! E não falo dos sofrimentos que o espectro da fome provoca, como aquele que observei na fronteira entre Jalalabad (Afeganistão) e Peshawar (Paquistão): adultos e crianças, tentando passar sorrateiramente, evitando bastonadas, alguns quilos de farinha para sobreviver! Nesse jogo do gato e do rato, uma menina afegã de oito anos morreu, marcando indelevelmente a minha consciência humana.

Que medidas estruturantes globais têm de ser já tomadas para acabar com a verdadeira escravidão biológica que é a fome? Impedir a especulação financeira sobre os alimentos, a grande detonadora do cataclismo actual; proibir a produção de biodiesel com alimentos e em áreas agrícolas destinadas à alimentação dos seres humanos e animais (há alternativas!); adoptar medidas que evitem o agravamento das alterações climáticas a médio prazo, dado que algumas das suas consequências já são irreversíveis; aumentar as áreas de cultivo destinadas a seres humanos e animais. Já o falecido professor Josué de Castro, antigo presidente da FAO, demonstrava no seu magistral livro Geopolítica da Fome que o planeta, se bem gerido, poderia alimentar o dobro da população actual; regulamentar e controlar o preço dos combustíveis! Nunca as empresas petrolíferas e os estados ganharam tanto dinheiro como agora; acabar com as guerras travadas sob pretextos falaciosos e com as violações do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas que só criaram mais refugiados e mais conflitos. E por isso, também, mais esfomeados; aliviar a asfixia que sufoca os países mais pobres, perdoando-lhes as dívidas e os juros e bloquear as contas faraónicas dos seus corruptos governantes, a fim de se criar um fundo de desenvolvimento para esses países; acabar com as monoculturas de exportação, nos países economicamente subdesenvolvidos, incentivadas ou impostas pelos funestos planos de (des)ajustamento estrutural do FMI e BM; implementar um comércio justo entre os países ricos e pobres.
Não é com a injecção pontual de milhões de euros que se resolve a epidemia da fome. Se não se aplicarem as medidas estruturais referidas, o genocídio pela fome vai agravar-se. As primeiras vítimas dessa praga social criada pelo homem são sempre as mesmas: os miseráveis dos países mais pobres. Por efeito de ricochete, seremos todos atingido. Temos de reagir todos e agora, pois o espectro da fome já está entre nós!


Fernando Nobre, Presidente da AMI

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A VERGONHA DOS RECIBOS VERDES

Verdes e no "limbo"
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Andam por aí uns tipos "fartos de recibos verdes". Não é a cor do recibo que os incomoda, é a discriminação a que tresanda. Cumprem horário, como o parceiro do lado. Estão, como ele, sob cutelo disciplinar. Podem até ser mais competentes. Mas são descartáveis, provisórios. Estão de passagem, quantas vezes para o desemprego.
Quando ouviram o Governo garantir que iria combater a precariedade, acalentaram a secreta esperança de que a sua vida melhoraria. Os que trabalham para o Estado, então, devem ter pensado que a vontade política proclamada se converteria em letra de forma. Se a uniformização entre os regimes privado e público era apontada como a chave das mudanças legislativas em curso, abria-se uma janela.
Pura ilusão! O Governo, que via Código do Trabalho quer limitar a três anos a contratação a termo no sector privado - penalizando até, fiscalmente, o recurso a esta modalidade - propõe-se reservar para o Estado o direito de deixar os seus trabalhadores precários a penar durante seis anos. Sem qualquer perspectiva de virem a conquistar um vínculo estável.
Porquê o tratamento diferenciado? Arrisque-se uma resposta. Cruzando esta medida com umas quantas aposentações (o despedimento puro e simples - ainda - não é possível) pode o Governo apresentar os resultados da dieta de emagrecimento que tem vindo a impor.
Mantendo os que só dispõem de recibo verde no "limbo" laboral, o Estado compõe o ramo, no que toca ao número de funcionários. Afinal, eles não passam de um "anexo" das estatísticas. Trabalham, mas nem um contrato possuem. São mais ou menos clandestinos, mesmo se indispensáveis ao funcionamento dos serviços. Ficam é mais em conta. É isso que importa.

Paulo Martins, in “De ciência incerta”, Jornal de Notícias [15.05.2008]

terça-feira, 6 de maio de 2008

Porque a TERRA é a nossa CASA...

Com os meus agradecimentos a Bernardino Guimarães pela luta que trava em prol da nossa Casa comum.
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Sobre a Terra

Enquanto os tambores comunicacionais faziam ecoar a crise alimentar mundial, a tal que ninguém previu e ninguém preveniu, comemorou-se o Dia da Terra, celebrado a 22 de Abril. Mesmo com escassa tradição entre nós, a efeméride não passou totalmente despercebida em Portugal. E falou-se do estado do planeta, das mazelas que lhe conhecemos, da nossa responsabilidade nas doenças planetárias, do que podemos fazer para lhe baixar, ao planeta, a febre e o esgotamento.
Falou-se inevitavelmente em "salvar a Terra". Mas será esse o apelo exacto, e necessário? Talvez, porque simplificando, a tarefa tem essa dimensão. Mas a Terra devia preocupar-nos porque vivemos nela e dela. Egoísmo humano? Verdade é que o nosso pequeno planeta azul passou muito tempo sem nós. A presença humana ocorre no último minuto, se considerarmos o tempo de vida que a Terra já leva, e mesmo a maravilhosa aventura da vida decorreu, na maior parte da sua lenta evolução, sem sinais do "Homo Sapiens Sapiens". Mais ainda da mesma forma, a Terra passaria muito bem sem nós. Apesar dos estragos que lhe infligimos, se por acaso desaparecêssemos, a vida encontraria os seus caminhos sem esta espécie diferente e inquieta que é a nossa. Um ambiente terrestre tornado hostil à presença e prosperidade dos humanos, inviabilizando a civilização orgulhosa que construímos, não seria necessariamente vazio e estéril.
Há pouco tempo, causou sensação nos Estados Unidos e não apenas, um livro intitulado "O mundo sem nós" do autor de livros científicos Alan Weisman.
Na obra, uma catástrofe inesperada e brutal (não especificada) leva ao desaparecimento da nossa espécie. Weisman especula então sobre o que aconteceria na que é hoje Nova Iorque, desde o momento do desmoronamento humano até milhões de anos depois.
Os escombros dos arranha-céus durariam décadas, apesar dos incêndios, mas o aço inoxidável das panelas perduraria por milénios e certos plásticos ficariam intactos durante centos de milhares de anos, pelo menos até que micróbios de nova estirpe evoluíssem para poderem consumi-los. Pior memória deixariam os reactores nucleares abandonados perto da grande cidade, porque sem sistemas de refrigeração a água, derreteriam, e o plutónio 239 radioactivo espalhar-se-ia, contaminando tudo nos séculos vindouros e originando estranhas mutações nas plantas e animais. Mas a história acaba com as árvores, estranhas árvores, rebentando os asfaltos de Manhattan e lobos e alces vivendo nos matagais de Wall Street. Mesmo com o chumbo, vertido pelos automóveis, que levaria 35 mil anos a dissipar-se dos solos. Como pormenor curioso, o escritor refere ainda que, passados milhões de anos, transmissões de televisão continuariam a percorrer o espaço exterior, talvez transportando pelo éter algum "reality-show".
A Terra não é uma abstracção. Melhorar o seu estado não deve ser entendido como um acto de generosidade para com a pobre e simpática esfera, cujas fotos captadas do espaço tanto nos comovem. Trata-se da sobrevivência da Humanidade em termos duráveis, mesmo que o nosso cálculo (seria a suprema incoerência) não possa ignorar o destino e o direito à existência dos outros seres vivos, condóminos desta "Nave Espacial Terra".Por isso, quando se vê a indiferença de tanta gente, e a persistência na ideia de "progresso" que nos diz que é preciso "crescer", produzir e consumir até ao paroxismo, apetece dizer que o Dia da Terra, todos os dias, devia ser tempo de pensar no futuro. No nosso, com humano olhar angustiado e esperançoso, medindo bem os passos dentro da única Casa que temos. A partir desta cidade e desta rua.


Bernardino Guimarães, in Jornal de Notícias,
6 de Maio de 2008

quinta-feira, 1 de maio de 2008