sábado, 30 de abril de 2011

Coração do Bosque

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1. Ergue-se a voz deste homem que sente, cada vez mais próxima, a respiração da morte. “Venham todos”, diz ele, rouco e magnânimo. E os filhos, espalhados pelo mundo, obedecem-lhe. Cinco percursos convergindo para o velho solar que emerge da bruma, na margem direita do Lima, casa grande e apalaçada convertida ao turismo de habitação, fonte de rendimento cinco vezes por ano. Os filhos regressam ao lugar da infância, à silhueta de pedra desenhando-se atrás do mesmo portão ferrugento e das mesmas videiras retorcidas, memória viva dos Verões que pareciam eternos mas não eram. Tantos anos depois, o patriarca disse: “Venham todos.” E eles vieram.

2. Espalhados pelos sofás da sala principal: Cármen, Filomena, Constança, Baltasar e Guilherme. Pernas cruzadas. Cigarrilhas acesas. Mãos tensas ajeitando blusas de seda e calças de veludo côtelé. Um silêncio constrangido. O tiquetaque do relógio vertical. Cinzas mortas na lareira apagada. Pela janela, a luz púrpura do crepúsculo. Filomena aproxima-se da varanda, abre a porta de vidro, espreita lá para fora. O jardim mantém o rigor geométrico das sebes, a elegância britânica da relva cortada muito rente. Do lado esquerdo, um caminho de terra através do pomar de laranjais e entre a folhagem, cheio de brilhos, o movimento lento do rio. À direita, o curral, as colmeias, uma pequena horta, o poço e o bosque de pinheiros bravos, agora estranhamente encolhido e sombrio. Filomena vira-se para dentro. “Lembram-se?” Os outros olham uns para os outros, como se tivessem vergonha.

3. À mesa do pequeno-almoço. Toalha de linho, chávenas de porcelana holandesa, geleia de marmelo, pão cozido em forno a lenha. Gargalhadas, gritinhos, manchas de café que alguém entornou de propósito. A euforia reverberando nos corredores. “Há quantos anos não estávamos assim, todos juntos? Vinte? Trinta?” A frieza da véspera dissolveu-se com as conversas nocturnas. Recapitularam-se os diferentes rumos, as vidas tão díspares, reduzidas a um mero intervalo, uma pausa, uma elipse. Circulam fotos de filhos, escritórios no Porto, novos maridos, casas ainda a cheirar a tinta. Na cozinha, a mais velha das empregadas comove-se com o ruído infantil que volta a encher a casa, como no tempo em que a senhora ainda era viva e dava ordens.

4. Sobre o que o velho lhes vai dizer, paira a incógnita. Cármen e Baltasar acreditam que o pai, amolecido pela velhice, vai perdoar os desvarios da prole e recompensá-los a todos com um testamento generoso. Constança e Guilherme, por seu lado, temem um castigo tardio digno do Antigo Testamento. Só Filomena, a caçula ingénua, sorri: “Acho que ele nos chamou para isto, para estarmos juntos outra vez, para nos reencontrarmos assim.”

5. No quarto sombrio, o moribundo pede para falar com a filha mais nova. Os outros saem e ele partilha enfim o segredo que lhe envenenou a vida: “Apenas tu, querida, és sangue do meu sangue.” À saída, Filomena diz aos outros que o pai morreu sereno. E esconde-lhes a verdade. Dentro da malinha, inútil, o testamento que há-de rasgar mais tarde, no coração do bosque.


José Mário Silva


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