sábado, 18 de junho de 2011

39 anos já


Um velho monge shan estava sentado, envolvido numa intensa discussão com um asceta hindu.
O monge explicava que todos os Shan acreditam que, quando um homem morre a sua alma vai para o Rio da Morte, onde o espera um barco para o atravessar para o outro lado, e é por esta razão que, quando um shan morre, os amigos colocam uma moeda na sua boca para pagar ao barqueiro que o leva para a outra margem.
Existe um rio, disse o hindu, que deve ser atravessado antes de se alcançar o céu mais elevado. Todos, mais cedo ou mais tarde, chegam à sua margem e têm de descobrir um meio de atravessar. Para alguns, a travessia é fácil e rápida; para outros, chegar à outra margem, é uma luta demorada e dolorosa, mas todos acabam por chegar a casa.


Nada sei dos mistérios insondáveis da morte. Sei, apenas, que seja onde for ou o que for essa casa onde todos acabaremos por chegar, o teu tempo aqui, Mãe, terminou há 39 anos. Só o meu amor por ti não terminou ainda. Por isso, permaneces viva no meu coração.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

La Coca


À chegada a Lanhelas estranhei a casa. Com os seus dois andares e adega, o pomar em volta, a nascente donde a água brotava para um tanque com rãs, pareceu-me demasiado grande para os meus pais e para mim. Soturna também, como se encerrasse uma ameaça.
A paisagem de campos e bosques que se via do meu quarto, o rio, as serranias, a nesga de mar ao pé de Santa Tecla, isso de facto seduziu-me. Mas era serenidade demais, beleza demais, um equilíbrio tão perfeito que logo me faltou a desordem e o bulício a que me tinha habituado na infância, quando da minha janela olhava para o Porto.
Aqui tudo respirava paz. Em vez da cacofonia citadina os ruídos eram distintos, cada galo esperava o seu momento de poder cantar, o ladrar dos cães espaçado como um diálogo. Na estrada o trânsito era quase nulo. Durante o dia inteiro passavam na linha uns quatro ou cinco comboios, mas o silvo das locomotivas e o matraquear das rodas nos carris ouvia-se de longe, ia crescendo gradualmente, chegava, diminuía, era apenas um traço sonoro a vibrar por instantes na quietude do ar.
Como ainda hoje, casas a fazer rua só as havia no centro da aldeia. As outras espalhavam-se pela encosta, nos campos próximos da estrada, juntavam-se aqui e além num beco. Por isso junto da nossa raras vezes se ouviam sinais de gente, era surpresa maior quando, chuva ou sol, os ranchos que trabalhavam nas leiras subitamente entoavam em coro as cantigas dolentes da tradição, a alegre harmonia das quatro vozes cobrindo como um véu a tristeza e a saudade dos versos que falavam de amores perdidos, de ausências, de felicidades nunca sentidas.

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É certo que havia o dinheiro do contrabando, mas esse infelizmente não cabia a todos. Para ganhá-lo era preciso mostrar força, ter capacidade de sacrifício, gosto do risco, um traço de crueldade e indiferença de carácter que poucos possuíam. Por isso a aldeia tinha a sua elite de contrabandistas e uma infantaria de carrejões, pescadores-espias, moços de recados. Abaixo desses viviam os jornaleiros do campo, os serventes das pedreiras, os quase pobres de pedir que, levados pela fome, iam emigrando em pequenos saltos. Primeiro a pé, para Viana. Meses depois, arranjando um pecúlio e um fatinho decente, de comboio para o Porto. Mais meses, ou anos, de comboio para Lisboa. Até que finalmente, poupando migalhas, chegava a hora de comprar passagem no navio e fazer a grande travessia para o desconhecido do Brasil, da América, da Venezuela, do Canadá, para onde iam com o credo na boca e um grande medo de que a vida lhes corresse mal.

J. Rentes de Carvalho, La Coca









sábado, 30 de abril de 2011

Coração do Bosque

Foto tirada de:



1. Ergue-se a voz deste homem que sente, cada vez mais próxima, a respiração da morte. “Venham todos”, diz ele, rouco e magnânimo. E os filhos, espalhados pelo mundo, obedecem-lhe. Cinco percursos convergindo para o velho solar que emerge da bruma, na margem direita do Lima, casa grande e apalaçada convertida ao turismo de habitação, fonte de rendimento cinco vezes por ano. Os filhos regressam ao lugar da infância, à silhueta de pedra desenhando-se atrás do mesmo portão ferrugento e das mesmas videiras retorcidas, memória viva dos Verões que pareciam eternos mas não eram. Tantos anos depois, o patriarca disse: “Venham todos.” E eles vieram.

2. Espalhados pelos sofás da sala principal: Cármen, Filomena, Constança, Baltasar e Guilherme. Pernas cruzadas. Cigarrilhas acesas. Mãos tensas ajeitando blusas de seda e calças de veludo côtelé. Um silêncio constrangido. O tiquetaque do relógio vertical. Cinzas mortas na lareira apagada. Pela janela, a luz púrpura do crepúsculo. Filomena aproxima-se da varanda, abre a porta de vidro, espreita lá para fora. O jardim mantém o rigor geométrico das sebes, a elegância britânica da relva cortada muito rente. Do lado esquerdo, um caminho de terra através do pomar de laranjais e entre a folhagem, cheio de brilhos, o movimento lento do rio. À direita, o curral, as colmeias, uma pequena horta, o poço e o bosque de pinheiros bravos, agora estranhamente encolhido e sombrio. Filomena vira-se para dentro. “Lembram-se?” Os outros olham uns para os outros, como se tivessem vergonha.

3. À mesa do pequeno-almoço. Toalha de linho, chávenas de porcelana holandesa, geleia de marmelo, pão cozido em forno a lenha. Gargalhadas, gritinhos, manchas de café que alguém entornou de propósito. A euforia reverberando nos corredores. “Há quantos anos não estávamos assim, todos juntos? Vinte? Trinta?” A frieza da véspera dissolveu-se com as conversas nocturnas. Recapitularam-se os diferentes rumos, as vidas tão díspares, reduzidas a um mero intervalo, uma pausa, uma elipse. Circulam fotos de filhos, escritórios no Porto, novos maridos, casas ainda a cheirar a tinta. Na cozinha, a mais velha das empregadas comove-se com o ruído infantil que volta a encher a casa, como no tempo em que a senhora ainda era viva e dava ordens.

4. Sobre o que o velho lhes vai dizer, paira a incógnita. Cármen e Baltasar acreditam que o pai, amolecido pela velhice, vai perdoar os desvarios da prole e recompensá-los a todos com um testamento generoso. Constança e Guilherme, por seu lado, temem um castigo tardio digno do Antigo Testamento. Só Filomena, a caçula ingénua, sorri: “Acho que ele nos chamou para isto, para estarmos juntos outra vez, para nos reencontrarmos assim.”

5. No quarto sombrio, o moribundo pede para falar com a filha mais nova. Os outros saem e ele partilha enfim o segredo que lhe envenenou a vida: “Apenas tu, querida, és sangue do meu sangue.” À saída, Filomena diz aos outros que o pai morreu sereno. E esconde-lhes a verdade. Dentro da malinha, inútil, o testamento que há-de rasgar mais tarde, no coração do bosque.


José Mário Silva


segunda-feira, 28 de março de 2011

Deste reino que já não é o meu mundo

Depressão ao nascer do Sol

Hoje, estou deprimido, pior, estou deprimidíssimo. Acordei cedo, mais cedo do que tencionava e, como não tinha nada urgente para fazer, saí para espairecer com o pretexto de comprar papel de carta para escrever a um velho e bom amigo. Posso afirmar sem exagero que percorri quilómetros a mendigar de papelaria em arremedo disso um bloco imaginário de folhas encorpadas, suaves ao toque, em que uma caneta de tinta permanente ou mesmo uma esferográfica proletária deslizassem em pontas para desenhar letras perfeitas e alinhavar palavras de saudade e benquerença.

Depois de muitas tentativas mal sucedidas acabei por regressar desiludido, triste e de mãos a abanar. Primeiro, porque quase toda a gente que abordei me olhou como se eu tivesse uma doença psiquiátrica e, para alívio espiritual, a andasse passeando de loja em loja como quem passeia o cão de árvore em árvore. Segundo, porque a única pessoa interpelada no peditório que entendeu perfeitamente o que eu desejava era um velhinho tolhido pelo reumatismo que, abanando afirmativamente a cabeça a cada uma das palavras que descreviam o objecto do meu anseio, acabou por dizer-me, com tristeza na voz e no olhar, que blocos desses – como os de antigamente – já ninguém fazia porque não havia quem lhes desse uso. Terceiro, porque a funcionária com idade para ser minha filha, junto da qual fiz a última tentativa de obter o almejado bloco, depois de me ouvir em silêncio inexpressivo e procurar nas prateleiras da loja, atirou para cima do balcão com estrépito alguns cadernos escolares de folhas pautadas e disse-me autoritária e entediada que, onde se escrevesse, só tinha aquilo. Depois ficou a olhar para as unhas coloridas distraidamente e eu para ela estupefacto.

O caminho de regresso pareceu-me ainda mais longo e cansativo e as escadas de acesso ao primeiro andar onde resido transformaram-se na subida ao calvário embora a crucificação já estivesse consumada e a chaga do peito tivesse sido aberta à unhada. A extinção daquele bem desejado significava afinal que eu próprio me encontrava em liquidação esperando apenas o momento do suspiro derradeiro para me ausentar definitivamente deste reino que já não é o meu mundo.

Enquanto pensava assim lembrei-me dos tempos em que as várias expressões dos nossos sentimentos íntimos eram lavradas em documento assinado e seguiam muito bem-postas em envelopes para viajar de comboio, de barco e até de avião e serem recebidas da mão de um mensageiro por familiares, amantes, amigos e até simples conhecidos.

Bem sei que às vezes, por razões imperiosas, as palavras vestiam camuflados e também os usei para enviar de Moçambique, diariamente, as palavras que ajudavam a matar a saudade da mulher que deixara com a filha ainda criança e desafogar a minha. Mas nessa altura a guerra justificava o sem-cerimónia da roupagem que a correspondência vestia e, mesmo assim, logo que nos últimos meses de comissão me enviaram para Tete, apressei-me a comprar um lindo bloco de papel de carta amarelado que tinha tenuamente impressos alguns animais da fauna local. Lembrei-me dele. Quando fechei os olhos, voltou muito nítido, senti-o macio na polpa dos dedos enquanto escrevia mentalmente voltado para o Sol que despontava ao fundo da savana. Com ele nascia a certeza de que tudo era passado e despertava a saudade que sempre surge quando se recorda.

Lima-Reis, da cabeça aos pés

[Notícias Magazine – 27 de Março de 2011]